O Artista

Nota introdutória

A criação e edição destes dois espaços (blogue de Ano Nobo e a fanpage Ano Nobo) foi a forma que eu encontrei de ajudar a eternizar a vida e obra de um dos expoentes máximos da cultura cabo-verdiana, filho de S. Domingos que tive o prazer de conviver, por um dia, mas tempo suficiente para sentir a “humanidade” e a simplicidade que o caracteriza e que todos reconhecem, naturalmente.

A ideia me surgiu em virtude de uma ausência, quase total, de informações e dados sobre “o nosso artista” no espaço virtual, a internet, que hoje desempenha um papel fundamental e irreversível na divulgação seja do que for.

A maioria das composições editadas neste blogue foram obtidas no livro  Cabo Verde Terra di Meu, da autoria de Firmino Cachada, lançado  em 2006.

Praia, Agosto 2012

À memória de Ano Nobo,

Rui Sanches

Ano Nobo

Bibliografia

Filho de Henrique Lopes Tavares e de Vicência Correia Tavares, Fulgêncio da Circuncisão Lopes Tavares, mais vulgarmente conhecido pelo “nominho” ANO NOBO(1), viu a luz do dia em Lém-Pereira, S. Domingos, no primeiro dia do ano de 1933.

Havia festa nessa noite em casa de Nha Fidjinha Mendonça, para celebrar a passagem de ano e a orquestra tocava a todas as cordas e sopros para animar o baile. Vicência tinha vindo ajudar a mãe nos preparativos da festa, apesar de se encontrar em estado avançado de gravidez. Passava já da meia noite quando Nha Fidjinha, excitada por ser novamente avó, interrompe a orquestra e anuncia: “Dja nu ten un Ano Nobo!” Todos os presentes correm a ver o fenómeno com os seus próprios olhos. É ali, à volta do bebé e da mãe afortunada, que a música e o canto prosseguem, agora em tom maior. Colocando a mão na cabeça da criança, a parteira Machinha Ferreira profetiza: -Será um músico, como os seus antepassados!

Ano Nobo, como ficou a ser conhecido o bebé, era na realidade descendente de uma geração de músicos insignes. Seu avô, Valentim Lopes Tavares, mais vulgarmente conhecido por Pipí, foi o reorganizador e grande maestro da Banda Municipal da Praia, que dirigiu desde 1914 até ao fim da sua vida, em 1930. O filho, Henrique Pipí, sucedeu-lhe na direcção da Banda da Praia, mas durante pouco tempo, já que viria a falecer em 1935, dois anos depois do nascimento de Ano Nobo.

Mas a própria mãe Vicência, não lhes ficava atrás neste amor pela suprema arte e até no conhecimento dos seus segredos, pois foi ela própria que ensinou a Ano Nobo os primeiros acordes no violão. Seria, porém, no “Conservatório” popular de António Preto, Ismael e Domingos de Nha Cumazinha, passeando o velho violão pelas fráguas de Rema-Rema, Água de Gato, Caiada, Lém-Pereira acima e Lém-Pereira abaixo, que Ano Nobo se formaria como poeta e músico da terra e do povo. A sua queda natural para os instrumentos de corda há-de levá-lo não somente a dominar a guitarra clássica e o cavaquinho, mas a dar também um “djeto” no bandolim, na guitarra portuguesa e mesmo no violino.

A sua vida de compositor começou por volta dos anos 50, na Achada de Santo António, com a morna “July“ que viria a ser gravada pelo falecido Frank Mimita. Pela mesma altura, compôs a sua primeira coladeira “Ta Pinga Tchapo-Tchapo”, que viria a ter grande êxito, pois foi cantada e gravada por Bana, Ildo Lobo e o conjunto “Os Tubarões” e ainda Gardénia Benrós.

Desde então, a sua veia de poeta e compositor não mais deixou de produzir, contando-se por mais de quatro centenas as suas composições, entre mornas e coladeiras, mas também merengues, sambas, mazurcas, funanás, marchas, valsas, hinos religiosos e ainda músicas de “batuku” e de “tabanka”.

Muitas dessas músicas foram compostas para interpretação imediata no salão paroquial de S. Domingos, já que Ano Nobo, sobretudo durante a década de setenta, foi um colaborador precioso da paróquia de S. Nicolau Tolentino, dedicando muito do seu tempo à animação da juventude, quer através da música, quer através do teatro.

Muitas das músicas de Ano Nobo ganharam projecção nacional e mesmo internacional, pois foram interpretadas e gravadas em disco por artistas conhecidos, como os já acima citados, mas também Dany Silva, Zeca di Nha Reinalda, Maria de Barros, Mariana Ramos, Maria Alice, Manuel Candinho, etc. Este último intérprete, um dos melhores guitarristas cabo-verdianos da actualidade, que tem feito carreira de sucesso na Holanda, foi um dos muitos discípulos do mestre Ano Nobo. Entre as composições que obtiveram maior sucesso podem citar-se “Adelaide”, “Linda”, “Lolinha”, “Falsia di Tanha”, “Ta PingaTchapo-Tchapo”, “Baíno”, “Ressana Godim” ou “Camarada Pépé Lope“.

Ano Nobo foi ainda um reconhecido autor dramático, compondo em crioulo diversas peças teatrais. Várias dessas peças, à semelhança de muitas das suas músicas, foram compostas para serem interpretadas no salão paroquial de S. Domingos, no âmbito dos programas culturais da paróquia. O seu mérito como dramaturgo foi reconhecido publicamente com a atribuição de um prémio à sua peça “Julgamento do Tótó ku Tota”, que venceu o concurso de melhor peça teatral de Cabo Verde, em 1999.

Ano Nobo nunca recebeu nada de ninguém pelo seu trabalho artístico. Ficou sempre um autor apagado, esquecido mesmo, humilde, amante da sua terra, do seu povo e da sua família. É por isso que as suas músicas são apreciadas, porque são a expressão pura dos sentimentos do povo cabo-verdiano, mormente da ilha de Santiago: um povo que, apesar das dificuldades e da luta pela sobrevivência em condições adversas, sabe dosear harmonicamente a alegria e a tristeza, a troça e o respeito, o lamento e a esperança, o religioso e o profano!

A sua maior recompensa e fonte de alegria foi, sem dúvida, ver a plêiade de artistas que deixou atrás de si, com alguns dos seus filhos em primeira linha. Eles são os guardiães do património artístico e humano que enriqueceu não só S. Domingos e a ilha de Santiago, mas também o resto das ilhas do Arquipélago, onde a sua música e influência chegaram e chegam ainda.

O seu mérito foi reconhecido pela Presidência da República com a atribuição da Medalha do Vulcão, em 1991, e com a entrega de um passaporte diplomático em 2003.

Ano Nobo teve 18 filhos, alguns dos quais são hoje também músicos exímios. Deles, o mais conhecido é o Dicky (Afonso), que tem feito carreira artística nos Estados Unidos. Mas outros(2) se dedicam também a perpetuar a obra musical do pai, nomeadamente através do grupo “Bonjardim”, fundado pelo pai em Lém-Pereira e através de outros eventos musicais para os quais são frequentemente convidados.

Ano Nobo fez um pouco de tudo na sua vida, ao serviço do povo de S. Domingos: desde regedor a funcionário público, desde professor na escola paroquial a catequista, desde mestre na música a conselheiro e pacificador nos conflitos. Sempre competente e zeloso, era do seu salário de trabalhador que tirava o necessário para sustentar a numerosa família. De uma generosidade sem medida, sempre ia mais longe do que lhe mandava o dever, desde que estivesse em causa o bem de alguém. Crente fervoroso, cumpria à risca o dever evangélico de “fazer o bem sem olhar a quem”!

Faleceu aos 71 anos de idade, na sua residência de Lém-Pereira, a 14 de Janeiro de 2004, vítima de um ataque cardíaco. Deixou viúva Filomena Frederico de Oliveira (Filó), da qual teve nove filhos.

O seu funeral foi ocasião de uma manifestação pública de pesar, com alcance nacional. A Presidência da República, o Governo e a Assembleia Nacional fizeram-se representar no seu funeral, bem como alguns artistas conhecidos e numerosos amigos. O Ministério da Cultura e Desportos emitiu uma nota oficial, salientando o facto de o país ter perdido uma das suas figuras mais ilustres, que muito contribuiu, enquanto humanista, para a “afirmação da cabo-verdianidade”.

ANO NOBO merece, sem dúvida, um lugar de destaque na história das artes em Cabo Verde e, mais particularmente, na história da música popular cabo-verdiana.

In Cabo Verde Terra di Meu (2006, CACHADA, Firmino)

(1) Ano Nobo usava também, com frequência, o pseudónimo “Sá” para assinar as suas produções musicais e teatrais.
(2) Para além de Dicky (Afonso), têm-se dedicado à música: Africano (Flávio), Nónó (Fulgêncio), Fany (Epifânio) e Raúl, os primeiros como instrumentistas e o último como vocalista.